domingo, 27 de setembro de 2015

Se vos derem limões, não façam como Fiona Gallagher.


Quem acompanha a Shameless, em Portugal transmitida na FOXlife com a tradução pouco abonatório No Limite, conhecerá, de cor, as tropelias e a personalidade, digamos que pouco ortodoxa, de Fiona Gallagher. Para quem não faz ideia do que me refiro, brevemente, explico que a série, que já conta com cinco temporadas, retrata a vida de uma família desestruturada, que vive - lá está talvez a explicação para a tal tradução - no limite da pobreza, da existência e da moralidade. Embora tivesse material mais do que suficiente para se tornar num dramalhão de cortar à faca, os criadores, John Wells e Paul Abbott - também produtor da série homónima inglesa, que estreou em 2004 - fizeram da trama uma verdadeira comédia negra, que ora desperta uma compaixão natural ora nos faz revirar os olhos de nervos, tal é o nonsense do quotidiano.  


Depois de uma breve nota introdutória sobre a série, que não lhe fará, de forma alguma, justiça, deixo ao critério do leitor que a curiosidade o leve a interpretar pelos seus moldes tão complexa obra contemporânea.
Ora sigamos, que não quero maçar com um texto demasiado longo quem me lê e debruçar-me-ei pois sobre uma das personagens principais, Fiona Gallagher, irmã mais velha de uma extensa família de seis irmãos, que carrega, fatidicamente, a responsabilidade da sua criação.
Interpretada por Emmy Rossum, é talvez a personagem mais complexa da série. Primeiro, cimenta uma ligação de amor com o espectador. Ligamo-nos, irremediavelmente, à sua imberbe idade, ao desconsolo que transparece quando as situações se adensam, ao esforço titânico que move a sua existência na qual se ligam, primeiramente, dois adolescentes e três crianças. E aqui o espectador não é poupado. Fiona é retratada cruelmente e todo o caos que encerra o seu crescimento não é amenizado com floreados aos olhos de quem vê. Há desmazelo, fome, pouca instrução escolar, modos rudes, toda uma torpe educação que vai muito para além daquilo que poderíamos esperar à partida.


No entanto, com o decorrer dos episódios, o espectador apercebe-se, de forma bastante explícita, que Fiona é mais do que uma jovem lutadora, que não teme o trabalho, que corre pelo que acredita e que transcende em muito a imagem de boa moça. Borra a pintura com tanta facilidade, desce tão baixo, que chega a incomodar. 


Na verdade, costuma-se dizer que podemos tirar a menina da rulote, dar-lhe uma casa com todas as mordomias, boa comida na mesa, roupa de qualidade, oportunidade de viajar, conhecer o mundo das artes, mas todos deveríamos saber que a rulote não se desvincula do seu modo de ser. Claro que Fiona não foi beijada pela sorte. Mas teve momentos em que poderia ter feito melhor, em que poderia imperar o bom senso. Ser pobre, viver em condições indignas para a nossa existência não nos caracteriza. Já as atitudes, a rudeza, a falta de sentido de oportunidade, a moralidade com que enxergamos o mundo, esses sim. Os criadores e produtores da obra talvez sejam magistrais por isso, por conhecerem a natureza humana e saberem firmemente que, quando a educação de base falha, só com muita disciplina e cuidados, se consegue evoluir sem grandes tropeços. Sair do gueto é uma tarefa inglória e Fiona, até agora, com grande pena minha, enterrou bem os seus dois pés na lama. São festas com drogas variadas à mistura, são relações com os mais variados trastes, são infidelidades de se lhe perder a conta, são tantas as imaturidades e até algumas vilanias que me recordo de dar por mim a tomar-lhe alguma aversão. E garanto-vos que sou pessoa de bastante paciência, mas o que é demais é moléstia.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

O inestimável valor da fraternidade





Se se incentivasse a paz com a mesma tenacidade que se fomentam guerrinhas sem importância, o mundo seria um lugar bem melhor. E isto vê-se nas questões mais básicas do quotidiano, assim como nas intervenções mais emergentes, na diplomacia de uma nação. 
Sobre a questão dos refugiados sírios, nota-se bem qual a fibra do povo português. Dos demais, escuso-me falar para não cair nos lugares comuns e fazer como muita gente: opinar genericamente sobre assuntos de natureza muito melindrosa. 
Mas, meus caros, em minha casa, por parte da minha mãe, muito mais generosa do que o meu pai, como, aliás, compete às mulheres, houve a transmissão de ensinamentos básicos de fraternidade. Se houver fartura, pois que se partilhe; se, por outro lado, a miséria nos bater à porta, como diz o outro, onde comem dois, comem três ou quatro. 
Goste-se ou não, os tempos mudaram-nos. Criou-se uma aversão à pobreza, à miséria, aos enjeitados. Outrora dizia-se que na pobreza havia uma certa nobreza de valores, que o dinheiro e o poder nos afetava e corrompia. Na obra de Júlio Diniz, Morgadinha dos Canaviais, talvez a personagem mais nobre dos romances que li, Augusto - a par de Siddhartha Gautam, numa vertente muito mais mística, mas que acaba por cair nos vícios mundanos-, é o símbolo de toda a hombridade, de uma honestidade pura, de uma crença inabalável nos valores e na irrelevância da materialidade. Talvez hoje os Augustos sejam cada vez menos para dar lugar aos imberbes e questionáveis Greys e se tenha substituído a moralidade pela ostentação.
Não sejamos, no entanto, com isso, hipócritas e que não se venda assim, sem mais nem menos, a ideia de que o objetivo supremo será o limiar da pobreza, de forma a captar um nirvana. Mas levantam-se questões mais profundas, de educação, de desenvolvimento humano e de distanciamento pelos mais fracos.
Aqui vos confesso, que esta ganância exacerbada, esta avareza, este desprezo pela vida, em países de um pretensioso estatuto de 1º mundo, me assustam de morte.