terça-feira, 2 de julho de 2013

Calúnia

 

Maryl Streep e Amy Adams, em Doubt.
Em 2008, altura do lançamento do The Doubt,  de John Patrick Shanley, decidi-me por ver o filme - um dos melhores até à data. Do seguimento do trama até ao final, nada tenho de extraordinário a apontar. O que nunca consegui esquecer, nas palavras de , cuja personagem foi alvo de uma perseguição cerrada, foi um ensinamento bíblico de que "se alguém subir ao topo de um alto monte com um travesseiro de penas, e soltar as penas ao vento, será possível recolher essas mesmas penas, uma semana depois? Não. O vento tê-las-á espalhado por quilômetros de distância, umas para a direita, outras para a esquerda, para trás, para a frente. Seria impossível recuperá-las. Trata-se de um mal irreparável. Assim são os boatos."
Uma vez iniciada a traiçoeira arte de espalhar um boato ou criar uma calúnia, nem todos os Santos vos poderão valer.
Na lindíssima Calúnia de Apeles, de Botticelli, cuja composição bebeu inspiração numa pintura perdida de Apeles, um célebre pintor grego da Antiguidade, aborda-se uma temática semelhante. Dela temos conhecimento através de Luciano de Samósata, nos seus Diálogos.
 
 
Segundo Luciano, o pintor Antífilo, bem menos dotado do que o seu colega Apeles, acusara o último de ter participado numa revolta dirigida contra o rei Ptolomeu IV, na corte onde estavam empregados os dois pintores. Inocente, Apeles foi feito prisioneiro até um dos verdadeiros mentores da revolta ter provado a sua inocência. Ptolomeu reabilitou o pintor, entregando-lhe Antífilo como escravo.
Anos mais tarde, levado pela pintura de Apeles, Botticelli haveria de pintar a Calúnia homónima.
À direita, numa sala aberta decorada com baixos-relevos e esculturas, o rei está sentado num trono. Ao seu lado, vemos as personagens alegóricas da Suspeita e da Ignorância que lhe sopram aos ouvidos de burro, que se devem interpretar como símbolo da sua tolice e falta de reflexão. Os seus olhos estão baixos, de maneira que não pode ver o que se passa; às cegas, ele estende a mão para a frente e encontra a personificação da Inveja. Vestida de preto, fixa o rei com um olhar penetrante e estende-lhe um braço, que acaba numa mão de comprimento anormal, num gesto rude cheio de agressividade. Da mão direita ele saca a Calúnia, ela própria portadora de uma tocha na mão direita, como símbolo das mentiras que espalha, enquanto da esquerda puxa a sua vítima pelos cabelos, um adolescente quase nu. A sua inocência está simbolizada pela sua nudez. Ele une, em vão,  as mãos para suplicar que o libertem. Atrás da Calúnia, a Perfídia e a Fraude estão ocupadas a entrançar os cabelos da sua senhora, a atá-los com um laço branco e espalhar rosas sobre a cabeça e os ombros. Por baixo da aparência enganadora das jovens e belas mulheres, utilizam fraudulentamente os atributos de pureza e inocência para com eles decorar as mentiras da Calúnia. A uma certa distância, sob a aparência de uma velha vestida com roupas pretas em farrapos, está o Arrependimento que se vira, com uma cara em que a boca adquire uma amarga contração, para a última personagem feminina no extremo da composição, a Verdade. Na sua nudez, de uma beleza perfeita, a Verdade faz um sinal com o dedo indicador da mão direita apontada para o alto, em direção aos poderes de que devemos esperar o último juízo sobre a mentira e a verdade. Sem se preocupar com o que os outros fazem, todos virados para o rei, e logo totalmente isolada deles, ela manifesta assim a sua constância incorruptível. Junta a sua nudez à do jovem inocente, enquanto as outras personagens disfarçam com roupas o seu verdadeiro ser. A Inveja e o Arrependimento cercam a Calúnia juntamente com as suas companheiras.

Sem comentários:

Enviar um comentário