quarta-feira, 26 de junho de 2013

Bedshaped



Não sei precisar há quantos anos - atendendo à minha ainda juventude não mais de três ou quatro -, ao regressar a casa, na presença do homem que amava à época, deparei-me com um senhor, cujo nome, perdoem-me a rudeza, não me recordo. Era um senhor simpático, aprazível, tinha por hábito cumprimentar-me com maneiras dóceis. Quando se ria, ria-se para ele, sozinho nos seus pensamentos, perdido no emaranhar das suas emoções pessoais.  Sabia-nos todos espelhos. Na noite que vos relato, encontramo-lo estendido no chão de um passeio sujo, com as calças molhadas da sua própria urina. Um constrangimento humano acercou-se de mim. Ajudámo-lo a recompor-se e acompanhamos o homem do sorriso vago, em condições vexantes, com um odor nauseabundo não só a álcool, fluidos corporais, mas também a humilhação, a uma vida de miséria pretendida, a escolhas dilacerantes.  
Vivia num quarto sufocante, atolado nas suas recordações longínquas. Vi, de soslaio, uma fotografia amarelecida, mas tratada com cuidados que lhe careciam até nas coisas mais simples do seu quotidiano. Era uma família. Uma mulher, bem vestida, com maneiras de senhora fina, umas crianças e um homem que, apesar de beijado pela juventude farta, ainda se sabia que estava naquele ser alcoolizado que já dormia na cama imunda.
Uns dias mais tarde, o senhor do sorriso vago, mas dócil, morreu. Nunca soube em que circunstâncias, com que dores de alma, com que receios, com que amarguras. Morreu. É o fim. Dele ficaram as pessoas da foto enegrecida, uns quantos indivíduos com quem travou longas conversas filosóficas de café e fiquei eu, que me lembro, não raras vezes, da tristeza do seu quarto e da proteção infantil com que cultivava a foto da sua família.

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